Jornal O Globo 25/09/2011
Rio de
Janeiro, Domingo, 25 de Setembro de 2011 – Ano LXXXVII – Nº28.538 – Edição
fechada às 22h47m
Excesso de
leis urbanísticas estimula ilegalidade no Rio
Proprietários de oito mil imóveis
tentam regularizar obras sem licença
A grande
quantidade de leis urbanísticas, além da burocracia e demora para a aprovação
de projeto arquitetônicos, tem levado parte dos cariocas a apostar na
ilegalidade na hora de ampliar, construir ou fazer pequenas obras em seus
imóveis. “A legislação do Rio é uma verdadeira colcha de retalhos, mais
complicada do que de outras cidades”, diz o arquiteto Manuel Fiaschi. O
secretário de Urbanismo, Sérgio Dias, afirma que, desde 2009, proprietários de
oito mil imóveis tentam legalizar suas obras.
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Um convite
ao “puxadinho”
Excesso de regras leva proprietários a
apostar na ilegalidade ao reformar ou construir
O excesso de leis urbanísticas, com
restrições dos mais variados tipos, além da burocracia e da demora para a
aprovação de projetos arquitetônicos, tem levado proprietários a apostar na
ilegalidade na hora de ampliar, construir ou fazer pequenas obras em seus
imóveis. Morador de Copacabana, onde acréscimos em coberturas são proibidos, o
cirurgião Sérgio Fernando Antas, por exemplos, driblou a lei e ergueu um
quarto, uma pequena sala, um banheiro e uma churrasqueira em 2002. Em janeiro
deste ano, recebeu uma notificação da prefeitura e teve que pagar R$47 mil para
legalizar o “puxadinho” depois de nove anos. Ele não reclama da cobrança, mas
não se conforma com o que vê da janela: cada vez mais construções de até cinco
andares sendo erguidas no Pavão-Pavãozinho sem qualquer restrição:
- Existe uma lei para lá e outra para
cá. Não me incomodo de pagar o que devo para legalizar meu imóvel, mas não entendo
por que os donos de coberturas na Zona Sul são proibidos de fazer uma pequena
expansão enquanto, na favela, os moradores podem fazer o que bem entendem.
Cada bairro
tem uma legislação
Reclamação parecida tem Carlos Henrique
Farias, morador do Catete que também resolveu expandir sua cobertura. Ele
começou a construir sem licença, ciente de que o local não podia ter acréscimo,
e teve a obra embargada pela Secretaria de Urbanismo.
- Já estava na fase do acabamento
quando houve a proibição. Nesse condomínio, não causa nenhum incômodo a
construção de mais um andar. Na favela Tavares Bastos, que é próxima, estão
desmatando e erguendo mais andares sem respeitar nada. Isso a prefeitura não
vê.
Segundo arquitetos e urbanistas,
enquanto a falta de fiscalização leva às irregularidades nas comunidades, na
cidade formal o que tem provocado a ilegalidade é o excesso de leis, de
restrições, além da demora para obtenção de licenças.
- Aqui tem uma lei para cada lugar. Até
1976, havia uma legislação que dava informações para toda a cidade sobre
gabarito, aproveitamento de terreno. Depois viram que isso não dava certo e
cada bairro foi ganhando um PEU (Projeto de Estruturação Urbana). Hoje a
legislação do Rio é uma verdadeira colcha de retalhos, mais complicada do que a
de outras cidades. Como o Rio tem muita beleza natural e histórica, é outra
dificuldade. Muitos projetos precisam também da aprovação do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ( Iphan). O projeto fica um mês na
Secretaria de Urbanismo, leva um mês para chegar ao Iphan, mais um mês para ter
um parecer e outro para voltar ao Urbanismo.Tem muita gente que não espera, faz
a obra e depois tenta resolver – diz o arquiteto Manuel Fiaschi, que abriu uma
empresa especializada justamente na legalização de obras.
Em muitos casos, segundo Luís Motta,
assessor de urbanismo da vereadora Andréa Gouvêa Vieira (PSDB), o cipoal de
leis de sobrepõe num mesmo local, causando conflitos:
- As pessoas ficam sem saber: o que
vale? Isso ou aquilo?
Novela por conta disso passou a
construtora MDL Realty ao fazer o projeto de um condomínio na Avenida Salvador
Allende, na Barra. Para cumprir o artigo 9 do decreto 30.912/09, a construtora
criou um lote para destinação comercial ao desmembrar o terreno. Só que, apesar
da exigência de haver comércio no condomínio, não existiam parâmetros
urbanísticos para edificação comercial no local:
- Apesar de uma lei exigir que houvesse
comércio, não havia nenhuma lei que informasse gabarito, taxa de ocupação,
índice de aproveitamento. Tivemos que recorrer aos assessores do secretário de
Urbanismo, que definiram o que ia valer no local – diz a arquiteta Camila
Chacon.
Sem conhecimento técnico e ideia dos
trâmites burocráticos que uma construtora é obrigada a enfrentar, a
aposentada Neuza Carneiro de Campos caiu numa irregularidade sem saber.
Moradora de um andar alto num prédio da Barra com vista para o mar, ela sofria
com o excesso de vento e tinha que secar toda a sala sempre que chovia porque
entrava uma enxurrada pela varanda. Decidida a acabar com o incômodo,
envidraçou a varanda há 15 anos, seguindo regras do condomínio, que só
permitiam vidros claros. Agora, foi um dos 29mil cariocas que receberam uma
notificação da Secretaria de Urbanismo para legalizar a varanda. Terá que pagar
R$7 mil.
- Resolvi pagar, mas não entendo o
motivo. Continua sendo uma varanda, só que protegida do mau tempo. Muita gente
entrou na Justiça por achar que não está ilegal e também porque o valor é alto.
Mas preferi não me aborrecer – diz ela.
Legalização
de tempos em tempos
Para o arquiteto Hugo Hamann, um dos
fatores que levam os cariocas à ilegalidade é a certeza de que as regras podem
ser burladas sem maiores problemas, já que a prefeitura, de tempos em tempos,
oferece uma espécie de anistia aos ilegais – a chamada mais valia. Pelo
instrumento, é possível legalizar, mediante pagamento, quase tudo o que estiver
em desacordo com as regras.
- Se você tem um instrumento que
permite legalizar o ilegal, é claro que as pessoas vão contar com isso. A
permissividade da mais valia favorece as irregularidades. Se você sabe que é
proibido, sabe que as leis são complicadas, mas sabe também que vai conseguir
passar por cima delas alguns anos depois, por que vai respeitar as regras? Se a
lei fosse inflexível, não haveria ilegalidade – observa.
No último período da mais valia no Rio,
que começou em 2009 e foi até janeiro deste ano, cerca de oito mil pessoas
deram entrada em pedidos de legalização. A prefeitura emitiu, no caso da
legalização de varandas fechadas, 29 mil avisos, mas só 15 mil proprietários
deram entradas nos processos para regularizar. Ou seja, quase metade ainda
aposta na ilegalidade.
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Para a
prefeitura, ilegalidade não compensa
Secretário diz que excesso de leis não
é desculpa para cair em irregularidade, que dificulta venda e reduz valor de
imóvel
A opção de muitos cariocas de construir
sem licença e depois esperar pela mais valia para regularizar a obra é uma
prática reconhecida pelo secretário de Urbanismo, Sérgio Dias. Ele, no entanto,
diz que esse crime não compensa:
- A repetição da mais valia gerava essa
prática. Mas agora os valores da mais valia são mais pesados do que
antigamente. A conta doeu para quem fez essa opção. Além disso, quem tem o
imóvel irregular enfrenta muita dificuldade na hora de vender. Ele perde valor
também.
Dias conta que mais de oito mil processos
de mais valia deram entrada na Secretaria de Urbanismo entre 2009 e janeiro
deste ano. Ele acredita que, em muitos casos, os proprietários cometem a
irregularidade por terem sido mal orientados:
- As pessoas não sabem que não podem
fechar a varanda, outras apostam que não vão ser descobertas. Dos oito mil
processos em análise, 3.500 estão concluídos. A expectativa é que a prefeitura
arrecade R$ 400 milhões com a mais valia. As irregularidades mais frequentes
foram o fechamento de varanda, os acréscimos em coberturas e os problemas no
afastamento exigido de prédios e casas – diz, lembrando que nem tudo é possível
regularizar. – A mais valia não altera gabaritos, não é para tudo, mas serve
para a grande maioria dos casos.
Apesar de discordar de arquitetos e
urbanistas que afirmam que o Rio tem um verdadeiro emaranhado de leis para
construir ou reformar, Dias diz ser um absurdo as pessoas que reclamam do
excesso de regras preferirem a ilegalidade:
- Cumprir a lei é obrigação do cidadão.
O que poderia levar à ilegalidade é o excesso de burocracia, não a legislação.
A burocracia é errada: a regra urbanística, não – diz ele, acrescentando que a
prefeitura tem tomado uma série de medidas para reduzir o tempo de espera para
a aprovação de projetos.
Segundo Dias, há cerca de quatro anos
levava-se em média 12 meses para se obter licença para uma obra. Agora, com a
informatização dos processos e o treinamento de funcionários, os licenciamentos
saem, garante ele, em no máximo um mês:
- Nos casos de obras de grande porte, é
ainda mais rápido. Os projetos do programa Minha Casa, Minha Vida têm a licença
analisada em dez dias. No Porto também temos essa agilidade. As obras para Copa
e as Olimpíadas também.
Segundo a Secretaria de Urbanismo, a
agilidade já aparece nas estatísticas: este ano, no primeiro semestre, foram
licenciados 2.593.307 metros quadrados para construção, valor 19,8% acima do
mesmo período de 2010.
O secretário acredita que, com a
aprovação de novos Projetos de Estruturação Urbana (PEUs) – a previsão é que
sejam 22 no mandato de Eduardo Paes -, a colcha de retalhos da legislação passe
a não existir mais:
- Na Barra você é obrigado a doar parte
do terreno para comércio. Isso foi aprovado quando a Barra não tinha muita
opção. Hoje não existe mais esse problema, mas a lei continua. É preciso
analisar isso.
Licença para
pintar fachada levou 4 meses
Demora para obter permissão é uma das
queixas de quem é legal
Quem procura seguir as regras precisa
se munir de paciência. A artista plástica Mariana Manhães, moradora de uma casa
preservada na Urca, teve que, para pintar a fachada e fazer pequenos reparos no
imóvel, submeter seu pedido ao Iphan. Ela contratou o arquiteto Manuel Fiaschi
para tratar de papelada, que levou quase quatro meses para ficar pronta:
- Quando compramos a casa, havia
detalhes da fachada que estavam caindo. Até sair a aprovação, o reboco caiu.
Mariana não reclama do excesso de
regras para as casas preservadas ou tombadas – uma forma de mantê-las de pé e
com suas características -, mas critica o que chama de “burocracia”:
- Vou querer
mexer nos banheiros daqui a algum tempo, mas não sei se precisará de
autorização. Eu contratei um arquiteto para legalizar, mas às vezes é tão
enrolado que as pessoas fazem sem consultar, do jeito que for. Isso é uma pena.
Na Urca,
vizinhos atuam como fiscais de obras
Na Urca, bairro com muitas casas
preservadas ou tombadas, os vizinhos ficam, conta Mariana, atentos a qualquer
ilegalidade:
- Assim que comecei a obra, veio um
vizinho querendo ver a licença. Achei ótimo. As pessoas devem chegar à
conclusão de que vale a pena ser legalizado. Eu, por exemplo, tenho desconto no
IPTU.
No Humaitá, moradores de um prédio na
Rua Maria Eugênia que ganhou varandas – não previstas no projeto original –
contrataram um despachante para cuidar do assunto. Foram dois meses até sair a
aprovação, prazo que não incomodou os moradores.
- A gente quis fazer de acordo com a
lei. Se começasse antes, poderia ser multado, e não há necessidade disso – diz
Maria Helena Fuschito, uma das moradoras do imóvel.